06 setembro 2008

Tu e teu inimigo
O que te corta o peito e faz tua carne fragmentada? Qual solidão macrobiótica te desconforta e te apavora e te alimenta o coração miúdo, danifica tua mente tão moralmente sábia e miserável? Que desordem é esta que em ti se assenta e banha teu semblante de amargura e podridão?

Em que porcaria de homenzinho tu te converteste, símbolo de sonhos esmagados e bocas e línguas e genitálias chupadas sem amor. Poetinha minúsculo de insucesso, sem projeção nenhuma, insuspeito de crimes e virtudes, sem qualquer audácia a favor da vida. Te fizeste criança e entregaste o doce das ilusões em troca da angústia adulta de ser racional, intelectualmente triste, comprimido por expectativas quase todas abortadas, fodido por uma literatura imoral e sem consistência.

És uma nação inteira de lamúrias absurdas, e vives buscando ”uma razão para viver”. Que asneira! Que aberração de consciência catar uma razão qualquer na vida como quem procura piolhos na cabeça de um pirralho. Queres uma conciliação com o mundo das coisas visíveis, mas estás cego de certezas, sem credo e sem um par de seios para lamber. Queres um abraço que te cubra de afeição, mas teus amigos estão paralíticos de ti, não se atrevem a mais nenhuma aproximação, já que quando se propuseram a te acolher, cuspiste catarro neles.
Estás todo encoberto pelas merdas que fizeste contra tua gente, contra teu destino, contra ti mesmo. Falaste demais, quando se exigia silêncio. Ficaste mudo, quando tua voz seria salvação. Fizeste tudo ao avesso, os projetos cronologicamente se nulificaram, os amores paulatinamente se consumiram em traições vulgares e agressividades infantis. Agora sim, és o dono do mundo, o protagonista no palco maior, o centro das atenções todas, és tudo que é abismo, teu coração é precipício de fronteiras; a pele, uma cobertura de cortes incicatrizáveis. És todo um precipício. Comes o pão que o diabo amassou, porque tu mesmo o amassaste, tu mesmo desenhaste em ti a face monstruosa, a capa vermelha e o rabo assustador.

As conquistas fraudulentas, as aventuras bizarras, as porcarias tragadas, bebidas, viraram espelho de tua identidade que se definha. Há cólera infiltrada nos teus olhos como também há ferrugem nos teus sonhos e pus nas tuas feridas.

Lança teu olhar para o céu, talvez chova. Pede perdão, talvez te ouçam, talvez te mates. Do que vale a piedade que não se vê, do que vale o bem depois do mal disseminado? Há uma verdade maior sobre todas as verdades maiores: não adianta fugir do demônio que te persegue se ele é teu melhor amigo.

Não fujas, agarra-te a ti mesmo e ama o hospitaleiro da tua moléstia. Tu e teu inimigo moram na mesma casa, no mesmo corpo. Ama-te a ti mesmo, se permitires namorar a matéria abominável. Se te permitires cheirar o enxofre, engolir o podre, apreciar o feio.

Não é a morte que põe fim a vida do homem, é a sua vida que se mortifica.

Um comentário:

J.C. disse...

as palavras que trazem o eu que um homem planta a vida toda,de que o perdão talvez seja dado ,de que as mudanças talvez acontecem...mas não pode apagar a merda que fez a vida toda,porque elas podem marca algumas pessoas,mas desgasta uma vida toda.
texto excelente belo
J.C

Quem sou eu

Sou o que ninguém sabe e o que todo mundo conhece ou cobiça saber. Não me compreendem porque não me entendem. Não me entendem porque não me compreendem. É fácil. Se há certeza, é a duvida de tudo. Se há dúvida, é a certeza apavorante de não saber nada disso, nem daquilo, nem de coisa alguma. Não sou paradoxo, nada de versos sobre minha exatidão, sou imprecisão exata, abstração concreta, sou eu, só eu tão mim-mesmo. Se me queriam outro, por que procuram-me? Procurem outro, ou escavem esse outro em mim, tenho milhares de mins num eu. Ora, sou matéria palpável e dita de um absurdo impalpável e indizível. Só me entende quem não me quer entender. Não sou resposta, já disse, nem tenho respostas, sou a pergunta aberta e fria que nunca cansa de ser dúvida, que não cessa da convicção de não saber quem sou.
"A vida inteira estive em tudo como um deus, eu era todas as coisas de uma só vez, era a prece e a sentença, a entrega e a perdição, as juras e todo o pecado. A vida inteira cabia em mim porque eu era a vida inteira dentro de mim, até perceber que eu faltava a mim... perdi tudo sem nunca ter tido coisa nenhuma".