09 setembro 2008

Aniversário

Fazer anos nos afasta da gente mesmo, nos conduz sempre a uma nova condição de vida, distancia algumas coisas pelas quais, antes, zelávamos tanto. Somos agora isto: esta face, este trabalho, este relacionamento, estes sonhos. Eu sou isto, e o engraçado é que, mesmo estampado em nossa face o ser atual, o passado não parece em nada mais conosco.

Conforme os anos correm, imaginamos o nosso eu do passado, meio bisonho, ultrapassado. Hoje, os nossos desejos são bem mais claros, os projetos, a aparência, as roupas. A cada aniversário, a vida vai esboçando o pano da nossa personalidade, o nosso lado criança vai virando lembrança. Agora é preciso crescer com o nosso corpo, colocar a cabeça no lugar, erguer os planos, parar de pensar só no nosso próprio umbigo. A nossa felicidade depende do modo como nós enxergamos o mundo, depende do nosso sorriso, das nossas ruínas. Todas as experiências têm valor inestimável, cada fruto colhido no presente deve ser digerido por nós para que o nosso ser se torne um bom menino quando crescer.

Às vezes alguns amigos esquecem o nosso aniversário e isso nos fere, porque esse dia parece ser reafirmação dos nossos laços. Mas muitas vezes a mente não acompanha o nosso coração. Nós mesmos já devemos ter esquecido esse amigo, de ligar pra dar boa noite, de ter ido a sua casa para visitar a família, de dar um abraço antes de se despedir. As pessoas tomam atitudes desagradáveis sem se dar conta disso. Os braços nem sempre cumprem o que a mente ordena, a boca nem sempre atina na impulsão dos nossos desejos, nem sempre sentimentos e ações se unem por uma causa maior.

Quem deixa de conviver com pessoas que, em outra época, o acalentaram, o reergueram, sabe que o tempo e a memória são assassinos dos tesouros do coração. Contudo, uma coisa é certa: nenhum lapso de memória apagará de nós a vida que ficou no passado compartilhada, as loucuras da mocidade e as fossas que enfrentamos. O presente separa muitas pessoas, mas a vida as mantém unidas em alguma parte valiosa lá no fundo.

Celebramos, a cada aniversário, uma parte da nossa vida que fica no passado, mas, sobretudo, celebramos a chegada de um novo tempo, novos gozos e novas mazelas. A felicidade de fazer anos se resume em deixar para trás quem éramos e dar boas vindas ao novo que nos é dado de presente. Devemos tomar cuidado apenas para não nos consideramos experientes demais, felizes demais, maduros ao quadrado, porque, vez ou outra, vamos quebrar a cara.

Nosso ser é constituído de experiências, nossa alma sobrevive de amores. Estamos inconscientemente sendo moldados pela sucessão dos acontecimentos, pelas batidas do coração. Morremos todos os dias em que cada coisa que fica pra trás e o jeito é seguir em frente. O tempo vai afunilando as coisas. Ficam poucos amigos (só os verdadeiros), algumas lembranças boas e outras ruins, algumas esperanças. Como sai de moda o seu jeito de vestir, sai de moda também aquela criancice do passado. O computador um dia não funciona mais, o carro, o celular, o MP3 vira MP15 em breve. Só o que fica em nós é aquilo que nos torna humanos, aquilo que nos enobrece. Ficam, na memória, histórias hilárias e algumas fotos (parecemos extraterrestres), fica uma saudade meio triste dos encontros, das festas, das brincadeiras imaturas do colégio.

Com o passar dos anos, nós crescemos porque nos nutrimos de tudo que um dia foi nosso. Impregnado ao nosso ser do presente fica nossa vida passada. Falamos, pensamos, choramos, sonhamos como aprendemos ao longo da vida. Completar anos nos ajuda a lembrar que somos fruto de cada coisa que experimentamos. E não adianta muito se apegar ao passado, o presente não pode ser deixado pra amanhã, porque senão não teremos do que sentir saudade.

Os dias que passam levam o nosso jeito antigo, o namoro que acabou, parte das pessoas que você considerava mais importantes. O tempo leva a inocência, a falta de confiança, o medo de viver, todavia deixa rastros de nostalgia, elucida o nosso jeito de olhar as coisas. O que há de novo em cada amanhecer define a nossa real identidade. Crescimento não significa ter muitos anos, mas ter muitas vivências, episódios grotescos, acontecimentos marcantes, perdas irreparáveis.

Por isso, precisamos residir no campo de hoje sem a inquietude de ali não mais poder viver amanhã, devemos compartilhar sorrisos como se não houvesse derrotas e pranto. Entregar-se a cada abraço como se não houvesse solidão, provar cada beijo como se não houvesse o abandono. Amar cada momento da vida como se não fôssemos morrer (e não morremos). A nossa eternidade é o que deixamos vivo nas pessoas que amamos.
No nosso aniversário, vamos repartir o bolo das experiências, acender a vela das expectativas, aplaudir o novo humano que está à porta e veio ficar. Depois de provar os salgadinhos de aventuras, de mastigar as empadas de desamores e jogar para o teto os confetes da juventude, no fim da festa, vamos pôr um brinde na estante da memória. Embora um dia ele pareça ridículo, futuramente será o símbolo de uma época boa que não voltará mais e de uma pessoa bem diferente que você foi um dia.

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Quem sou eu

Sou o que ninguém sabe e o que todo mundo conhece ou cobiça saber. Não me compreendem porque não me entendem. Não me entendem porque não me compreendem. É fácil. Se há certeza, é a duvida de tudo. Se há dúvida, é a certeza apavorante de não saber nada disso, nem daquilo, nem de coisa alguma. Não sou paradoxo, nada de versos sobre minha exatidão, sou imprecisão exata, abstração concreta, sou eu, só eu tão mim-mesmo. Se me queriam outro, por que procuram-me? Procurem outro, ou escavem esse outro em mim, tenho milhares de mins num eu. Ora, sou matéria palpável e dita de um absurdo impalpável e indizível. Só me entende quem não me quer entender. Não sou resposta, já disse, nem tenho respostas, sou a pergunta aberta e fria que nunca cansa de ser dúvida, que não cessa da convicção de não saber quem sou.
"A vida inteira estive em tudo como um deus, eu era todas as coisas de uma só vez, era a prece e a sentença, a entrega e a perdição, as juras e todo o pecado. A vida inteira cabia em mim porque eu era a vida inteira dentro de mim, até perceber que eu faltava a mim... perdi tudo sem nunca ter tido coisa nenhuma".