17 setembro 2008

Puto da vida

Estou puto da vida, sei que é pífio dizer que estou puto da vida, mas, ora, é exatamente esse meu estado: puto da vida. Se pudesse, escreveria uma carta pra dizer isto, mas talvez me faltasse um recebedor conveniente para destinar esta tão habitual mazela, estar puto da vida. Por essa convicção e por tantas outras que não sei, optei por este discurso, embargado de despeito e repulsa. Primeiro, devo confessar que este tecido de lamentações é a tentativa derradeira deste proseador ignóbil, visto que estou de saco cheio disto. Não tenho mais como aturar tanta lamúria sobre uma lauda emudecida. Depois, porque, pus-me a escrever tudo outra vez pelo infortúnio de uma queda de energia filha-da-puta, que me fez perder grande parte da oratória. (Coisas desse mundo cibernético que contamina e bestifica).

Não é o descontentamento de um homem comum que me assola, não estou mal de saúde, não perdi o emprego, minhas contas não estão no vermelho e tenho, sim, quem me ame. Minha voz desolada vem de mim mesmo. Quem sabe, nada o mundo tenha a ver com meu pesar, ou, do contrário, talvez ele seja o progenitor desta ferida gritante, cá dentro, sem dor, sem sangue e sem reincidência na carne.

Caminho há tempos assim, tão comum e tão assim-mesmo que me estorva tanta vagueza. Meus tantos sins, meus tantos nãos nunca mudam. Meus ais, meus dissabores, meu porra diário nem se agravar conseguem. Do mesmo modo, minha fortuna, minhas façanhas de galanteador barato, nem isto tem tido melhoria. Na verdade, agora estagnei dentro de mim, tudo está tão corriqueiro, até a paz me impacienta. Logo eu, tão indiferente aos olhos alheios e invejosos de outrem, tão ser-tudo, quase surreal aos íntegros, castos, sábios, mesquinhos e meretrizes. Eu, de tantos mins e outros, encontro-me tão alheio do ser pensante e sentinte que era. As tantas coisas proferidas por mim, já as enunciaram antes (com rasa ou maior veemência) então, de que me valem? Sou um eu-cópia de outras cópias, e me acho varrido do eu-mesmo tão inovador de outrora.

Sim, estou quase certo de uma crença, nesta me reclino mais avidamente. Esta solidão parentesca que a mim tem resignado, é esta ausência indefinida, esta hipótese de ilusão mal projetada, esta falta amarga de alguém, ou de alguma coisa, esta procura de um consolo, de um colo, um ombro, um alento fora de mim. Todos têm razão, todos, sem exceção, fui eu que contraí esta doença, esta febre do desapego, este jeito de me esquivar de amores, de não me enroscar mais nos fios de nenhum coração, de não me encarcerar em mais nenhuma teia. Todos me fitam, examinam-me tão sozinho. Decerto, nunca mais amei deveras, meus amores nem têm tempo para serem amados. Ao meu lado, são efêmeros como um raio na noite erma. Apavorante convicção. Este desgosto e amolação no viver será a ingênua miséria de amar? Falta-me a superficialidade de cobiçar alguém com amor, daquele modo infantil que intumesce de tolice qualquer erudito, versado, prudente ou perito.

Há tempos, reconheço-me amado. Iludo, dissimulo, finjo, confabulo saudades. Não ligo. Prometo. Escondo-me, e nunca choro. Apenas divirto-me, divirto-me muito. Mas jamais paro. Sigo e deixo a quem me ama a sensação sofrível do desprezo. Será que isso me teria posto nessa vagueza, é por isso que estou puto da vida? Eu, repleto de coisas sublimes e torpes, por isso estou puto? Tendo reputação, êxito profissional, sexo sem compromisso, falta-me a tolice de amar? Falta-me o sofrimento constante de não ser correspondido? Faltam-me as noites em claro, as esperanças vãs, o sorriso camuflado? Tenho mesmo motivos para estar puto da vida, se o que me falta, aos outros sobra: amar sem correspondência. Visto isso, concluo: necessito de porções ridículas de desprazer, pena, consternação. Que exigência oca, que frivolidade pueril!

Pelo menos em algo não me difiro de ninguém: somos todos iguais na dor e na ausência. Os que amam lastimam a falta do ser amado, os que não amam lamentam a carência de um artefato para amar. Isso, sinto-me só. É meu direito estar só, por mais que achem minha solidão sem pé nem beira. Todo mundo carrega a solidão do universo inteiro, porque a realidade do desejo é um sonho sempre irreal, e qualquer um tem o direito de estar puto da vida por alguma coisa.

09 setembro 2008

Aniversário

Fazer anos nos afasta da gente mesmo, nos conduz sempre a uma nova condição de vida, distancia algumas coisas pelas quais, antes, zelávamos tanto. Somos agora isto: esta face, este trabalho, este relacionamento, estes sonhos. Eu sou isto, e o engraçado é que, mesmo estampado em nossa face o ser atual, o passado não parece em nada mais conosco.

Conforme os anos correm, imaginamos o nosso eu do passado, meio bisonho, ultrapassado. Hoje, os nossos desejos são bem mais claros, os projetos, a aparência, as roupas. A cada aniversário, a vida vai esboçando o pano da nossa personalidade, o nosso lado criança vai virando lembrança. Agora é preciso crescer com o nosso corpo, colocar a cabeça no lugar, erguer os planos, parar de pensar só no nosso próprio umbigo. A nossa felicidade depende do modo como nós enxergamos o mundo, depende do nosso sorriso, das nossas ruínas. Todas as experiências têm valor inestimável, cada fruto colhido no presente deve ser digerido por nós para que o nosso ser se torne um bom menino quando crescer.

Às vezes alguns amigos esquecem o nosso aniversário e isso nos fere, porque esse dia parece ser reafirmação dos nossos laços. Mas muitas vezes a mente não acompanha o nosso coração. Nós mesmos já devemos ter esquecido esse amigo, de ligar pra dar boa noite, de ter ido a sua casa para visitar a família, de dar um abraço antes de se despedir. As pessoas tomam atitudes desagradáveis sem se dar conta disso. Os braços nem sempre cumprem o que a mente ordena, a boca nem sempre atina na impulsão dos nossos desejos, nem sempre sentimentos e ações se unem por uma causa maior.

Quem deixa de conviver com pessoas que, em outra época, o acalentaram, o reergueram, sabe que o tempo e a memória são assassinos dos tesouros do coração. Contudo, uma coisa é certa: nenhum lapso de memória apagará de nós a vida que ficou no passado compartilhada, as loucuras da mocidade e as fossas que enfrentamos. O presente separa muitas pessoas, mas a vida as mantém unidas em alguma parte valiosa lá no fundo.

Celebramos, a cada aniversário, uma parte da nossa vida que fica no passado, mas, sobretudo, celebramos a chegada de um novo tempo, novos gozos e novas mazelas. A felicidade de fazer anos se resume em deixar para trás quem éramos e dar boas vindas ao novo que nos é dado de presente. Devemos tomar cuidado apenas para não nos consideramos experientes demais, felizes demais, maduros ao quadrado, porque, vez ou outra, vamos quebrar a cara.

Nosso ser é constituído de experiências, nossa alma sobrevive de amores. Estamos inconscientemente sendo moldados pela sucessão dos acontecimentos, pelas batidas do coração. Morremos todos os dias em que cada coisa que fica pra trás e o jeito é seguir em frente. O tempo vai afunilando as coisas. Ficam poucos amigos (só os verdadeiros), algumas lembranças boas e outras ruins, algumas esperanças. Como sai de moda o seu jeito de vestir, sai de moda também aquela criancice do passado. O computador um dia não funciona mais, o carro, o celular, o MP3 vira MP15 em breve. Só o que fica em nós é aquilo que nos torna humanos, aquilo que nos enobrece. Ficam, na memória, histórias hilárias e algumas fotos (parecemos extraterrestres), fica uma saudade meio triste dos encontros, das festas, das brincadeiras imaturas do colégio.

Com o passar dos anos, nós crescemos porque nos nutrimos de tudo que um dia foi nosso. Impregnado ao nosso ser do presente fica nossa vida passada. Falamos, pensamos, choramos, sonhamos como aprendemos ao longo da vida. Completar anos nos ajuda a lembrar que somos fruto de cada coisa que experimentamos. E não adianta muito se apegar ao passado, o presente não pode ser deixado pra amanhã, porque senão não teremos do que sentir saudade.

Os dias que passam levam o nosso jeito antigo, o namoro que acabou, parte das pessoas que você considerava mais importantes. O tempo leva a inocência, a falta de confiança, o medo de viver, todavia deixa rastros de nostalgia, elucida o nosso jeito de olhar as coisas. O que há de novo em cada amanhecer define a nossa real identidade. Crescimento não significa ter muitos anos, mas ter muitas vivências, episódios grotescos, acontecimentos marcantes, perdas irreparáveis.

Por isso, precisamos residir no campo de hoje sem a inquietude de ali não mais poder viver amanhã, devemos compartilhar sorrisos como se não houvesse derrotas e pranto. Entregar-se a cada abraço como se não houvesse solidão, provar cada beijo como se não houvesse o abandono. Amar cada momento da vida como se não fôssemos morrer (e não morremos). A nossa eternidade é o que deixamos vivo nas pessoas que amamos.
No nosso aniversário, vamos repartir o bolo das experiências, acender a vela das expectativas, aplaudir o novo humano que está à porta e veio ficar. Depois de provar os salgadinhos de aventuras, de mastigar as empadas de desamores e jogar para o teto os confetes da juventude, no fim da festa, vamos pôr um brinde na estante da memória. Embora um dia ele pareça ridículo, futuramente será o símbolo de uma época boa que não voltará mais e de uma pessoa bem diferente que você foi um dia.

06 setembro 2008

Tu e teu inimigo
O que te corta o peito e faz tua carne fragmentada? Qual solidão macrobiótica te desconforta e te apavora e te alimenta o coração miúdo, danifica tua mente tão moralmente sábia e miserável? Que desordem é esta que em ti se assenta e banha teu semblante de amargura e podridão?

Em que porcaria de homenzinho tu te converteste, símbolo de sonhos esmagados e bocas e línguas e genitálias chupadas sem amor. Poetinha minúsculo de insucesso, sem projeção nenhuma, insuspeito de crimes e virtudes, sem qualquer audácia a favor da vida. Te fizeste criança e entregaste o doce das ilusões em troca da angústia adulta de ser racional, intelectualmente triste, comprimido por expectativas quase todas abortadas, fodido por uma literatura imoral e sem consistência.

És uma nação inteira de lamúrias absurdas, e vives buscando ”uma razão para viver”. Que asneira! Que aberração de consciência catar uma razão qualquer na vida como quem procura piolhos na cabeça de um pirralho. Queres uma conciliação com o mundo das coisas visíveis, mas estás cego de certezas, sem credo e sem um par de seios para lamber. Queres um abraço que te cubra de afeição, mas teus amigos estão paralíticos de ti, não se atrevem a mais nenhuma aproximação, já que quando se propuseram a te acolher, cuspiste catarro neles.
Estás todo encoberto pelas merdas que fizeste contra tua gente, contra teu destino, contra ti mesmo. Falaste demais, quando se exigia silêncio. Ficaste mudo, quando tua voz seria salvação. Fizeste tudo ao avesso, os projetos cronologicamente se nulificaram, os amores paulatinamente se consumiram em traições vulgares e agressividades infantis. Agora sim, és o dono do mundo, o protagonista no palco maior, o centro das atenções todas, és tudo que é abismo, teu coração é precipício de fronteiras; a pele, uma cobertura de cortes incicatrizáveis. És todo um precipício. Comes o pão que o diabo amassou, porque tu mesmo o amassaste, tu mesmo desenhaste em ti a face monstruosa, a capa vermelha e o rabo assustador.

As conquistas fraudulentas, as aventuras bizarras, as porcarias tragadas, bebidas, viraram espelho de tua identidade que se definha. Há cólera infiltrada nos teus olhos como também há ferrugem nos teus sonhos e pus nas tuas feridas.

Lança teu olhar para o céu, talvez chova. Pede perdão, talvez te ouçam, talvez te mates. Do que vale a piedade que não se vê, do que vale o bem depois do mal disseminado? Há uma verdade maior sobre todas as verdades maiores: não adianta fugir do demônio que te persegue se ele é teu melhor amigo.

Não fujas, agarra-te a ti mesmo e ama o hospitaleiro da tua moléstia. Tu e teu inimigo moram na mesma casa, no mesmo corpo. Ama-te a ti mesmo, se permitires namorar a matéria abominável. Se te permitires cheirar o enxofre, engolir o podre, apreciar o feio.

Não é a morte que põe fim a vida do homem, é a sua vida que se mortifica.

03 setembro 2008



Oração



Amem!
Amém!

Quem sou eu

Sou o que ninguém sabe e o que todo mundo conhece ou cobiça saber. Não me compreendem porque não me entendem. Não me entendem porque não me compreendem. É fácil. Se há certeza, é a duvida de tudo. Se há dúvida, é a certeza apavorante de não saber nada disso, nem daquilo, nem de coisa alguma. Não sou paradoxo, nada de versos sobre minha exatidão, sou imprecisão exata, abstração concreta, sou eu, só eu tão mim-mesmo. Se me queriam outro, por que procuram-me? Procurem outro, ou escavem esse outro em mim, tenho milhares de mins num eu. Ora, sou matéria palpável e dita de um absurdo impalpável e indizível. Só me entende quem não me quer entender. Não sou resposta, já disse, nem tenho respostas, sou a pergunta aberta e fria que nunca cansa de ser dúvida, que não cessa da convicção de não saber quem sou.
"A vida inteira estive em tudo como um deus, eu era todas as coisas de uma só vez, era a prece e a sentença, a entrega e a perdição, as juras e todo o pecado. A vida inteira cabia em mim porque eu era a vida inteira dentro de mim, até perceber que eu faltava a mim... perdi tudo sem nunca ter tido coisa nenhuma".