29 abril 2009

O fruto da Felicidade

Antigamente eu acreditava na felicidade como uma paisagem próxima, e peregrinava à toa, pelos acostamentos, e ruelas, infeliz de dar dó. Tinha pés calejados, cabeça baixa, mas me entupia de expectativas rumando ao futuro glorioso reservado pelos deuses a mim. Todavia, o tempo escorreu pelos córregos da vida, (quando o tempo se esvai, os castelos utópicos costumam desabar). E não é que desabaram. Meus palácios, minhas muralhas, meus bordéis, todas as colunas da minha existência fantasmagórica despencaram. Já não acredito que a estrada me conduza a um mundo de delírios intermináveis: risos incontidos, nuvens de algodão, rios de chocolate, árvores de bombom. Não creio mais na fantasia ingênua que alimentava o conto de fadas da minha imaginação.

Não confio mais na felicidade, quer dizer, não como antes, agora acredito apenas no caminho, no trajeto. Não busco chegada, apenas me nutro no fluxo tranqüilo dessa jornada. Não ergo meus olhos para alcançar o que não posso ver, não olho para trás para tentar recuperar as imagens que perdi de vista. Não levanto a minha voz para que me ouçam além de aqui. Estou atento às coisas da estrada, aos transeuntes apressados, aos percalços, à neblina na manhã, aos pedintes, aos sem afeto, ao céu alaranjado das tardes dominicais, às primeiras estrelas que inesperadamente somam-se no escuro. Olho para noite sem pensar no dia, e vivo o clarão do dia sem pensar que a noite virá. Comungo cada tempo na dosagem certa de seu instante.

Nas minhas veias não há uma adrenalina irrefreável, uma espécie de orgasmo infinito, feito de sonhos açucarados e fanfarras arrebatadoras. E, por mais que não habite o sétimo céu nem sonhe mais com ele, não carrego uma fadiga persistente na carne, amortecendo meu riso. Levo somente uma quietude nem feliz nem triste, uma serenidade vazia e silenciosa em cada passo dado.

No espelho diário, enxergo um ser que ri sem exageros e chora sem demasiada dor. Considerar-me-ia feliz? Talvez devesse, mas a fortuna da felicidade ilimitável que vivificamos em relances na vida, deixa depois uma amargura ácida, uma via-crúcis na alma. Os momentos de alegria avassaladora, intensa, aqueles minutos quase irreais, se prolongam em horas e dias de uma solidão descomunal. Quando o encanto do prazer se rompe, abre-se uma cratera de quilômetros e nela afunda nosso coração. A maioria de nós deseja uma felicidade carnaval, risos absurdos, gozos ininterruptos, amores eternos, amigos perfeitos, vida financeira sempre estável, farras sem ressaca. A verdade é que toda glória precede o fracasso, a depressão, a nostalgia, a fossa.

Por tudo isso, não desejo a felicidade absoluta: viver amores platônicos, grafar meu nome na memória dos livros, comprar um iate, aparecer na tevê, casar com aquela moça... (provavelmente ela lerá isto aqui, estratégia inconsistente, hoje as pessoas pouco se apaixonam pelas palavras).

Sinto que cresci comigo, hoje anseio a calmaria dos instantes reais, feitos apenas da matéria do presente, feitos de inconstância, da seiva inesgotável de agora, da imperfeição dos beijos que se vão com o passar das horas, os instantes feitos de algo que se vai para nunca mais voltar.

A maioria das pessoas supõe uma ventura desenfreada em carros supersônicos, em apartamentos com frente para o mar. É feliz quem tem um parceiro do tipo capa de revista, quem tem fama e dá autógrafo. O ser comum odeia ser comum, o anonimato é triste. Aspiram, tresloucados, a esse tipo de felicidade, listam prováveis conquistas materialistas e emocionais, e lá se vão atrás da felicidade, reservando para futuramente a sua fortuna. Resultado: nunca chegam ao amanhã sonhado e consomem a magnitude dos momentos recentes na ilusão do porvir.

Eu, no entanto, cultivo o jardim da paciência. Semeio boas gargalhadas, rego com as minhas lágrimas o chão do presente, dia após dia, contemplo o crescimento de uma plantinha, ela se enraíza na minha carne. Demora anos para crescer, mas dá frutos desde o começo, são poucos e de um sabor espantoso, alguma coisa meio doce e meio amarga que fica na boca por algum tempo, até se desfazer por completo dentro de mim.
Esse fruto chamo de felicidade.

Quem sou eu

Sou o que ninguém sabe e o que todo mundo conhece ou cobiça saber. Não me compreendem porque não me entendem. Não me entendem porque não me compreendem. É fácil. Se há certeza, é a duvida de tudo. Se há dúvida, é a certeza apavorante de não saber nada disso, nem daquilo, nem de coisa alguma. Não sou paradoxo, nada de versos sobre minha exatidão, sou imprecisão exata, abstração concreta, sou eu, só eu tão mim-mesmo. Se me queriam outro, por que procuram-me? Procurem outro, ou escavem esse outro em mim, tenho milhares de mins num eu. Ora, sou matéria palpável e dita de um absurdo impalpável e indizível. Só me entende quem não me quer entender. Não sou resposta, já disse, nem tenho respostas, sou a pergunta aberta e fria que nunca cansa de ser dúvida, que não cessa da convicção de não saber quem sou.
"A vida inteira estive em tudo como um deus, eu era todas as coisas de uma só vez, era a prece e a sentença, a entrega e a perdição, as juras e todo o pecado. A vida inteira cabia em mim porque eu era a vida inteira dentro de mim, até perceber que eu faltava a mim... perdi tudo sem nunca ter tido coisa nenhuma".