31 março 2009

A verdade sobre a mentira

Consideramos a mentira uma manifestação praticada por alguém em benefício próprio. Há, obviamente, níveis e tipos de mentira. Há também níveis e tipos de mentirosos.
No entanto, (com o perdão do jogo de palavras) uma pequena mentira pode vir a ser uma grande verdade. Não na concepção de quem a pratica, mas na de quem dela se alimenta.

Como o ato de mentir é uma atitude isolada - uma conduta individual sobre o meio social - caso não seja descoberto pode se disseminar, tornar-se um fato e passar a condição de verdade coletiva. Por exemplo, um homem tachado como louco, mesmo não o sendo, será louco até que não se prove publicamente a sua sanidade mental (outro conceito relativo). Os outros não o verão como realmente é, mas como a maioria o enxerga. Não obstante, a loucura é sempre um julgamento dos outros em relação a alguém. Não de alguém em relação a si mesmo. Nenhum louco é louco o bastante para se considerar doido varrido.

Mas, desmascarada a mentira, além do constrangimento sofrido por quem a cometeu e da indignação dos ludibriados, ela pode receber outras denominações. São sinônimas a calúnia, a traição, a picaretagem, a falsidade e a blasfêmia... Gosto de uma, em especial: a perfídia. Pérfido é aquele que, para parecer convicto, jura por Deus que a mentira é verdade.

Também é mister afirmar: a mentira é uma invenção humana fruto de outra invenção humana, a linguagem. Nós, humanos e humanamente falantes, falamos de nós e falamos dos outros e das coisas dos outros. Avaliamos, julgamos, contestamos nossas ações, nosso comportamento, nossa aparência e nossa condição. Assim mesmo o fazemos com as ações, o comportamento, a aparência e a condição dos outros. Os nossos pensamentos verbalizados não afetam só as nossas considerações a respeito de algo, mas mobilizam as mudanças de pensamento e verbalização grupais. Se eu digo Alfredo é chato, ainda que Alfredo não aja como um chato, esta afirmação pode levar alguém a vê-lo como uma pessoa irritante. E Alfredo pode não só ser considerado chato como, verdadeiramente, irritar alguém.

A comunicação humana se dá por meio da interação entre os seres. Neste contato, somos induzidos a revelar ao outro nossas experiências no mundo e nossas opiniões sobre mundo. Obviamente, no jogo verbal, dizemos o que vemos à luz dos nossos olhos, dizemos o que pensamos à luz dos nossos pensamentos. Isso faz com que nos tornemos manipuladores, porque o que dizemos é moldado pela nossa retina, pela nossa mente. Por isso mentimos, porque dizemos não a verdade sobre o mundo, mas a nossa verdade sobre o mundo.

A construção das nossas falas resultam das nossas intenções, tantas vezes inconscientes. É a intencionalidade que nos arrasta para o mar das mentirinhas cotidianas. Mentimos para impressionar, convencer, não decepcionar, não irritar, não iludir. A maioria das mentiras que criamos são despretensiosas. Quando descrevemos um objeto de desejo a alguém, somos fieis a nossa impressão sobre esse objeto; só que a sedução embaça, pode corromper a legitimidade do que é descrito. Descrevemos, então, as coisas não como são, mas como as vemos.

Já a mentira de cara lavada, como é conhecida, ocorre de maneira diferente. Mentimos com plena convicção quando a verdade não parece ser a melhor escolha. Você e seu amigo gostam da mesma pessoa. Por mais que amizade seja sincera, dizer a ele o que você sente soará como traição, melhor dizer que gosta de outra e não causar atrito. Note! Uma criança não mente maldosamente, mas por medo de ser repreendida por uma ação praticada. Numa escola, o aluno se esquece de fazer o trabalho de português, melhor afirmar que ficou em casa, ou a impressora estava sem tinta, talvez o PC quebrou. Suponha que você tenha saído com uma moça que não beija bem, e ela pergunta se você gostou. O que responde? Ou muito pior, você traiu sua namorada, pode ter até se arrependido, mas sabe que se contar perde o seu amor. Se for descoberto, nega ou confessa? A mentira é para a Bíblia um pecado capital, só que nem sempre é possível manter a plena sinceridade dos Deuses. Logo, vamos dividir a mentira em dois planos: as justificáveis e as injustificáveis.

1. Há pessoas que mentem para conquistar um emprego, dizem que tem experiência no ramo, já fizeram isso e aquilo. Há outras que mentem para conquistar alguém, dizem nunca trair, não gostam de briga, não são ciumentos e blá-blá-blá. Você vai visitar um cara à beira da morte, não sai mais da cama, quase não fala, não come, você vai lá e diz: “Tenha fé, você vai sair dessa”. O casamento de vocês já dura mais de uma década, a intensidade do amor se foi e você ainda diz todos os dias “eu te amo”, porque ainda há respeito, cumplicidade e uma linda família. Mentira abonada. Florbela espanca escreveu: “quem disse que pode amar alguém durante a vida inteira é porque mente.”

2. Há outra classe, a dos mentirosos maldosos. Mentem porque sentem inveja, querem sujar as qualidades do adversário, torná-lo inferior, menos digno de aplausos. Vocês fazem o mesmo trabalho na empresa, mas o seu colega foi condecorado, elogiado, pra você nem as migalhas. Você, então, começa a falar que ele não cumpre os horários, que ele copia os trabalhos da Internet, etc. Você gosta do namorado dela, então você espalha que ela não presta, só pensa no dinheiro dele, é uma safada, sem graça e interesseira. O mentiroso mal intencionado quase sempre quer superar o opositor, e a mentira é sua arma. Um outro tipo de mentiroso é aquele que convence os outros e torna a mentira uma cadeia de destruição. Adolph Hitler manchou de sangue o mundo quando convenceu que os judeus eram impuros, tinham de ser exterminados. Mentira intolerável. Um político corrupto uma vez disse "o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde".

A verdade mesmo sobre a mentira é que mentimos porque gostamos da verdade. A verdade que entusiasma. Mentimos por esperteza, para tornar algo mais atraente, mais divertido (o mote das piadas é o exagero), alguns mentem por vileza, por cultivarem a raiva e serem peças frágeis, diminuídas pela própria ignorância.

Assim como há verdades que precisam ser ditas, há mentiras que são aceitáveis. A mentira pode ser a verdade que convence. E a verdade ser a mentira, posto que não satisfaz.
Como afirmou Millôr Fernandes: Jamais diga uma mentira que não possa provar.

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Quem sou eu

Sou o que ninguém sabe e o que todo mundo conhece ou cobiça saber. Não me compreendem porque não me entendem. Não me entendem porque não me compreendem. É fácil. Se há certeza, é a duvida de tudo. Se há dúvida, é a certeza apavorante de não saber nada disso, nem daquilo, nem de coisa alguma. Não sou paradoxo, nada de versos sobre minha exatidão, sou imprecisão exata, abstração concreta, sou eu, só eu tão mim-mesmo. Se me queriam outro, por que procuram-me? Procurem outro, ou escavem esse outro em mim, tenho milhares de mins num eu. Ora, sou matéria palpável e dita de um absurdo impalpável e indizível. Só me entende quem não me quer entender. Não sou resposta, já disse, nem tenho respostas, sou a pergunta aberta e fria que nunca cansa de ser dúvida, que não cessa da convicção de não saber quem sou.
"A vida inteira estive em tudo como um deus, eu era todas as coisas de uma só vez, era a prece e a sentença, a entrega e a perdição, as juras e todo o pecado. A vida inteira cabia em mim porque eu era a vida inteira dentro de mim, até perceber que eu faltava a mim... perdi tudo sem nunca ter tido coisa nenhuma".